Estudo avaliou a contaminação por metais no leite humano e sua associação com o desenvolvimento neuropsicológico em crianças de três a 16 meses
Estudo desenvolvido pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em parceria com outras instituições mostrou que há contaminação por chumbo no leite humano e ela pode estar associada ao atraso no desenvolvimento da linguagem de bebês.
O leite humano continua a ser o mais recomendado para alimentação no início da primeira infância, mas a contaminação ambiental de quem amamenta – a que provém do ambiente, seja ar, água ou alimento – é um alerta aos governantes sobre os riscos da poluição por diversas atividades humanas.
A pesquisa, feita com 185 bebês da cidade de São Paulo, investigou a presença de metais no alimento e possível relação com problemas no neurodesenvolvimento. Os pesquisadores puderam identificar arsênio, mercúrio e chumbo no leite, mas focaram as avaliações na presença de chumbo e seus impactos para o desenvolvimento. Muito utilizado na indústria siderúrgica, no agronegócio em fertilizantes e emitido por carros e queimadas, o chumbo contamina e polui os solos, as reservas de água e o ar. O metal pesado não desempenha processo fisiológico algum no organismo humano. Ao invés disso, ele é conhecido amplamente como neurotóxico, devido à sua capacidade de passar pela barreira hematoencefálica, estrutura que regula o transporte de substâncias entre o sistema nervoso central e o sangue.
“[A contaminação] pode comprometer principalmente os astrócitos, que são células de suporte aos neurônios que fornecem tanto estrutura quanto energia. Quando não estão funcionando bem, como no caso de mitocôndrias comprometidas e metabolismo de gorduras alterado pela substituição de cálcio por chumbo, o neurônio funciona de forma diferente. Ele também altera a liberação dos neurotransmissores na fenda sináptica, como acetilcolina, GABA [ácido gama-aminobutírico] e glutamato”, explica Nathalia Ferrazzo Naspolini, nutricionista que realiza pós-doutorado no ICB e é a primeira autora do artigo.
A fenda sináptica é o espaço entre o terminal de um neurônio pré-sináptico (terminação do axônio) e a membrana de outro neurônio pós-sináptico (dendritos) ou uma célula-alvo. Esse espaço contém fluído extracelular, moléculas e íons importantes para o processo de comunicação entre neurônios (processo conhecido como sinapse), como os citados por Nathália.
Essa alteração nos níveis desses neurotransmissores na fenda sináptica pode levar a um declínio na habilidade linguística e de cognição”, detalha a pesquisadora.
Avaliação do atraso na linguagem
A pesquisa realizou o teste Bayley-III para avaliação dos marcos de desenvolvimento, aplicado por psicólogos do Projeto Germina, uma iniciativa colaborativa sem fins lucrativos composta de 15 grupos de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento da USP que estuda o desenvolvimento e a primeira infância. Eles avaliaram o desenvolvimento dos bebês em três períodos diferentes: o primeiro com 3 meses, o segundo entre 5 e 9 meses e o terceiro entre 10 e 16 meses, e constatou-se um atraso no desenvolvimento da linguagem relacionado ao leite contaminado.
“A criança com certo número de meses já deve sentar, já deve engatinhar. Existem esses marcos, e eles vão verificando isso a cada seis meses. O que testamos foi o Bayley-III, que avaliou domínios de cognição, linguagem, memória e capacidade motora. O único afetado foi o de linguagem. Por exemplo, em uma criança muito pequena, isso pode se manifestar como o início tardio do balbucio, que é um primeiro passo no processo de linguagem. Conforme a criança cresce, ela começa a fazer mais coisas, e isso vai mudando com o tempo”, detalha a pesquisadora.
Nathalia Naspolini ainda chama a atenção para o fato de que a maioria dos voluntários que participou do estudo é de média para alta renda. “Se nessas pessoas encontramos contaminação, em pessoas de baixa renda, que são mais expostas à contaminação ambiental, poderíamos encontrar níveis mais altos”, preocupa-se.
“Aqui [no Hospital das Clínicas da USP] encontramos que 30% das amostras tinham níveis [de chumbo] detectados, enquanto em estudo da Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realizado com amostras de pessoas de baixa renda, mais de 90% do material estava contaminado”, conta a pesquisadora que fez seu doutorado na Fiocruz, no Rio de Janeiro, também com a avaliação da exposição a poluentes ambientais, mas durante o período perinatal e na microbiota dos nascidos.
Proteger o desenvolvimento infantil
Apesar dos resultados, a orientadora da pesquisa e professora do ICB, Carla Taddei, destaca que “não podemos afirmar que o leite humano é ruim”. Sua linha de pesquisa é toda baseada em microbiota humana e ela busca, junto com Nathália, mecanismos de defesa desses bebês em exposição a partir dessas bactérias.
“Já sabemos pela literatura que existe um processo chamado biorremediação, em que, por exemplo, bactérias são usadas para recuperar um ambiente contaminado, como uma lagoa com problemas ambientais. O metabolismo bacteriano ajuda a limpar a lagoa, restaurando o ecossistema. Isso é algo muito conhecido na ciência, na pecuária e na agricultura”, explica a professora.
Se esse processo ocorre na natureza, é provável que também aconteça no ser humano. Alguns estudos em animais mostram que, ao tratar o animal com probióticos, como o lactobacilo, é possível remover metais do organismo. Embora isso ainda seja pouco discutido na prática humana, pois seria complicado testar a contaminação em humanos, é uma observação que Carla pôde fazer nos seus vários anos pesquisando microbiota.
“Embora encontremos leite humano contaminado, será que a microbiota do bebê não está agindo para oferecer uma proteção biológica, evitando níveis maiores de contaminação? Ainda precisamos de muitos estudos para responder a isso, mas também devemos explorar a possibilidade de distribuir probióticos para essas populações mais afetadas, se comprovado esse processo”, conclui.
O artigo Lead contamination in human milk affects infants’ language trajectory: results from a prospective cohort study foi publicado na revista Frontiers in Public Health.
Texto: Jean Silva, com orientação de Luiza Caires/Jornal da USP
Fotos: PxHere